Empresas familiares tem particularidades que as tornam diferenciadas. Para começar, o nome da família empresária está ligado à empresa. Portanto, a preocupação do impacto que faz e à reputação que cria, tem o compromisso de longo prazo, com foco na continuidade com transmissão da cultura de geração para geração.
O DNA e a vocação da família empresária em conjunto com sua capacidade de liderança, portanto, são fatores fundamentais para construção de legados e impactos importantes na sociedade.
Empresa prevalece sob interesses da família
Um dos maiores desafios que as famílias empresárias enfrentam está refletido em como observam a consciência do coletivo e se preponderam sobre os interesses individuais. São vários atores com expectativas, receios, apetites e personalidades diferentes que interagem em um ambiente empresarial que já lida com toda uma complexidade.
Para o bem e para o mal, a empresa passa a ser um palco para as ambições, egos e para a dinâmica da família. A sobreposição de papéis desafia as decisões, intenções e comportamentos. Afinal, Sr. João é pai, fundador e presidente da empresa. Esteve sempre no comando, tanto na empresa como na família. Essa hierarquia está presente em sistemas distintos, no entanto, cada sistema funciona com diferentes motores: o sistema familiar é movido pelos laços afetivos, a família busca igualdade, proteção, tem mais informalidade e intimidade.
No sistema empresarial, o que rege é a rentabilidade, desempenho, competências e investimentos. Como cada um usa vários chapéus ao mesmo tempo, pode ser difícil questionar um filho ou parente sobre seu desempenho. Também é difícil questionar um tio ou pai na sua visão de mercado ou forma de liderança.
Pode ser nebuloso identificar se a escolha de estar ou não na empresa é da pessoa ou se está agradando o desejo de alguém.
Outra dúvida deste emaranhado de papéis é a própria decisão de estar juntos. Em um primeiro momento, os sócios se escolheram, porém, nas próximas gerações, os membros da família entram na sociedade por herança. E seja por reconhecimento, gratidão, ou querer honrar tudo que foi construído, familiares podem sentir que precisam estar juntos, sem se perguntar ou validar se realmente são mais fortes e competentes dessa forma.
Além das sobreposições de papéis, existem várias dimensões envolvidas, sendo interessante ter uma visão com o olhar em várias disciplinas: gestão financeira e patrimonial, área jurídica, gestão de empresas e dimensão comportamental.
No quesito patrimonial, por exemplo, se envolve rentabilidade e fluxo econômico dos negócios, além da necessidade de liquidez dos membros da família, com as suas ambições e necessidades distintas de risco e retorno.
Ouvi de um membro de família empresária, certa vez, o seguinte: “um de nossos irmãos está à frente de um negócio, sua gestão é péssima, e a empresa está indo muito mal”. O irmão citado buscou empréstimos usando o nome da família. Todos ficaram envolvidos e comprometidos e os outros irmãos queriam resolver a questão sem impactar na harmonia da família.
No final das contas, é sempre sobre a estratégia de lidar. Dependendo do DNA, da cultura da família, de como o diálogo acontece, se é aberto, franco ou se deixam as questões veladas as estratégias mudam.
Muitas vezes o receio de magoar ou acirrar alguma tensão normalmente faz com que as pessoas tenham dificuldade em expor um tema, que pode ser proibido na família.
Dimensões da empresa familiar
O primeiro passo para lidar com todas essas dimensões é desenvolver a consciência dos vários papéis que cada um exerce, atualmente e no futuro, enxergando tanto as expectativas, quanto os receios e os impactos. Fica muito enriquecido quando uma família pode compartilhar essas visões, quereres e intenções, ficando todos com uma mesma imagem de quem são, de suas capacidades e necessidades.
Protocolo da Família: limites, critérios e engajamento
O desenho do Protocolo de Família organiza e aumenta a condição dessa consciência, além de puxar e articular vários temas que podem ser tabus ou delicados. É uma jornada de construção conjunta, que minimiza os conflitos através da criação de regras claras de como a família interage entre si e com os negócios.
Essa construção começa com a intenção da família com questões como: qual é projeto de vida de cada um? Qual é a aspiração desta família? Existem lideranças na família? Como irão avaliar e escolher membros da família para cada papel? E se as futuras gerações ficarem distantes do negócio, como serão preparadas para assumirem?
Muito além do que um documento que discute limites e regras, o Protocolo de Família é um processo que os membros compartilham e debatem suas visões, valores e expectativas com relação ao negócio e como querem se relacionar entre si.
O protocolo regula a relação entre os sócios e os gestores da empresa e tem a função de nortear a jornada a partir dos princípios que também estarão espelhados no Acordo de Sócios (regras de controle da empresa, critérios para venda, modelo de decisão, métodos para lidar com divergências e fóruns da governança). Enfim, é um processo de conscientização e engajamento dos familiares que traz transparência, além de ficar organizado e legitimado por todos. Considero uma das melhores oportunidades de espaço de conversa.
Assuntos discutidos em fóruns adequados
A construção formal de fóruns para cada papel é fundamental, como: Reunião de Sócios, Conselho Consultivo ou de Administração, Conselho da Família (ou reunião da família). Cada um desses fóruns tem pauta, ata e a disciplina de aprofundar, debater e decidir temas específicos. É preciso manter a disciplina de respeitar cada fórum e seu objetivo.
Por outro lado, como esta disciplina pode ser desafiadora, a atuação de facilitadores, consultores e ou conselheiros externos podem ser de grande apoio para esse aprendizado.
Como exercer cada papel da melhor forma
Após os debates, é preciso dedicação para aprimorar a condição de cada papel e como gerenciar os vários chapéus. Ninguém nasce sócio, conselheiro ou gestor.
Na jornada da família empresária, os papéis vão mudando. Um executivo membro da família será conselheiro, um futuro sócio entra na gestão, um sócio vai para o conselho. Enfim, são papéis que não foram ensinados. É como um treino, que pode ser feito com mentoria, cursos, dinâmicas e exercícios.
Trata-se de uma musculatura para entender “a partir de qual papel você está falando isto”? É valioso também fazer uma avaliação (individual e do grupo) sobre o que se espera dos familiares como bons sócios/acionistas e sobre como os preparar para estes papéis? Enfim, várias competências e habilidades são tratadas e podem ser desenvolvidas individualmente ou de forma coletiva.
Já fiz exercício de reunião entre familiares que eram gestores e sócios onde todos tinham um prisma na sua frente com estes três papéis. Se uma das pessoas demonstrasse um comportamento como membro da família durante essa reunião de conselho, qualquer um poderia mudar o prisma com a identificação “Família” nesta pessoa. E, como um jogo, isso ajudou as pessoas a entenderem como estavam se relacionando. Elas riram entre si e enxergaram e lideraram o processo de uma forma divertida.
Enfim, o importante é ter a coragem de olhar no espelho, enxergar as sobreposições, compreender os impactos e colocar em prática a separação de papéis. Para esse caminho, a sugestão é começar com o desenho do Protocolo da Família e a implementação dos fóruns de governança corporativa e familiar. Neste processo, deve-se engajar todos os membros da família em uma conversa aberta e contínua, que trata das motivações e das expectativas de cada um.
*Adriana Adler, Centro de Inteligência de Médias Empresas da FDC*
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